quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A IRONIA DE SER UM HOMEM MODERNO

(Acreditem: esse texto foi feito na meia hora do engarrafamento de ontem. e me perdoem: o blog não está abandonado, o tempo é que anda/corre irônico demais comigo...)



Falei alguma leviandade no carro, e ele me disse carrancudo: lá vem você e suas ironias... Respondi-lhe, irônica: “Se até a vida ironiza, que dirá eu...”. Estávamos atrasados cerca de meia hora e o caminho, às vezes tranqüilo, às vezes um pouco congestionado, hoje estava impagável. No mínimo, ficaríamos mais meia hora ali, cheirando a música e escutando poluição. O ar-condicionado que nos salve.

O homem inventou o carro porque não tinha perna que corresse à 120km/h, veio o congestionamento e deu ao homem aS saudades de puder andar a pé, de chegar na hora, de dizer boa noite e receber um sorriso.

O homem saiu do sítio porque a cidade tinha mil e um atrativos para melhorar sua vida que ele nem sabia direito em que não estava boa. A cidade se tornou inóspita e hoje compramos, a 100 mil reais o quilo do terreno esses condomínios fechados que nos promete deixar-nos mais próximos da natureza.

O homem paga com cartão de crédito porque cédula de dinheiro é ultrapassada. Escambo era o tempo em que eu trazia um prato de canjica e a comadre me dava um litro de leite de Mimosa. Hoje eu compro tudo com o quadradinho de plástico e o escambo é outro: eu troco a tarde deitado na rede pela fila pra pagar o financiamento que me dá crédito que me ajuda a pagar o cartão...

Ah, o homem... Vestia roupa por causa do frio, agora por causa da moda e por momento a moda é cada vez menos roupa, cada vez mais cara. Vai chegar o dia em que, no inverno, andaremos pelados e pagaremos uma fortuna pelo modelito.

O homem moderno inventou a família moderna, com dois filhos (um casal, sim), a mulher e seu silicone, o homem e sua amante, o carro à gás e a babá que cria os filhos do casal enquanto eles trabalham para pagá-la e ela puder receber o trocado que a ajuda a criar seus filhos que ficam em casa sozinhos, já que uma babá não pode pagar uma babá.

Aí os filhos da babá crescem e todo mundo preconiza que eles vão assaltar os filhos da mulher do silicone, mas os assaltados foram eles, do leite do seio (sem silicone e caído) da mãe, inclusive.

O homem moderno tem medo do homem moderno, posto que o homem moderno não é confiável. Eu penso isso do outro e o outro pensa isso-isso de mim e eu e o outro somos um só, almas gêmeas às inversas sem saber.

O homem moderno desossa a mulher que pré-historicamente não quis ceder-lhe os cabelos para puxar. O homem moderno promete no palanque que vai ter vale-circo e bolsa-pão. O homem moderno inventou o relógio e a falta de tempo veio em segundo(s).

Vai um homem moderno e me diz: lá vem você e suas ironias e eu lhe digo - embora ele não entenda enquanto a psicóloga ou a médium não explicar - que se a vida ironiza, oras, que dirá eu...


Samelly Xavier, texto inédito (favor respeitar direitos autorais)


4 Comments:

Sidney Andrade said...

Grande retorno!
E até me inspirou, há algum tempo pensei em algo parecido com a parte da babá aí. Loucuras minhas, acho que lhes vou dar cabimento finalmente, só porque você se intrometeu entre mim e minha preguiça.
No mais, adoro quando voltas ironica.
beijo.

Danielle Nóbrega said...

Certeiro! Adoro todas as ironias! Seu texto tá todo lindo! Beijos

Anônimo said...

samelly, querida!
eu, que nunca tenho tempo, nunca te escrevo/ligo/passo na tua/ e ainda sumo da tua vida - cobrança tua, parei um momento desta congestionada vida para simplificar:

que texto!

um beijo imenso!

stelio

Unknown said...

Ah tá! E que graça teria tu sem tuas ironias?!

Abraço apertado,
Da sua fã sem número.