segunda-feira, 20 de abril de 2009

CANOINHA VAI, CANOINHA VEM...

Entrei na sua memória para te dar um afago, mas você estava ocupado. Tentei te ligar, mas os fios que ligam tua pele ao arrepio estavam congestionados. Por fim, gritei como quem canta e você me acenou da janela da alma. Foi bonito feito um rio que leva uma canoinha quando ninguém observa.

O curso da vida, aliás, ouvi um dia você dizer, é feito essa canoinha que vai indo, vai indo, vai indo e quando se vê ela borbulha, glub-glub. Ou desvia a pedra. Ou distorce a correnteza. Ou nada contra a maré. Ou afunda para flutuar. São tantas possibilidades canoinha afora que é melhor ter rumo do que remo; rima do que rumor. Ah, canoinha sem tino...

Acho que quando canoa acima, rio abaixo, a pedra pára é hora de (re)mar. Seja por obstáculo ou calmaria, a canoa há de parar. É essa a hora de descansar o chapéu na sombra. O curso da vida é feito um chapéu feito de palha: tem sombra e frescor e uma utilidade que depende da cabeça.

Bati na porta da tua casa, mas você mudou tanto desde a última vez que eu te vi que me disseram que você se mudou. Mas aqui, na minha cabeçinha canoinha você está do mesmo jeito, carrancudo e risonho; incomodado e prestativo, igual todos os sertanejos que foram estudar na cidade grande. Bom é te recordar quando canoinha abaixo, pedra acima eu te ajudava a colher água na concha da mão. Sem pretensão de saciar a sede. Sem nada além da sede. Sem pretensão de ser sua sede. Eu preferia me fazer de água e assumir o formato da tua concha.

Toda vez que saíamos para pescar, você me explicava e eu entendia com devoção o quanto o tempo mudava a bússola do rio. E a maré que num dia não estava pra peixe, no outro descamava até sereia. Com o tempo, você me dizia, o corpo já não tinha impulso para mergulhar rio a dentro. Por isso a gente jogava a rede que ia longe e ia alto embocando o pôr-do-sol pra dentro da nossa canoinha. Eu que não era besta de te dizer que era aprendiz, logo, nem queria o fundo do mar do rio. Boniteza pra mim era ver tua rede pra lá e pra cá, teu riso de lado pra lá e pra cá, teus segredos contados pela metade pra lá e pra cá. E você em mim. Pra lá e pra cá. E a canoinha nos levando sabe-se lá Deus pra onde...

Aliás, Deus foi quem fez a canoinha pra gente. Mas você não viu ele ralando a madeira, nem colocando a bichinha no rio e veio me dizer que se ele inventou a canoinha o problema era dele. Agora você tinha encontrado com ela e tinha entrando nela e agora era como ela que você ia pra lá e pra cá. Se Deus viesse lhe cobrar madeira, você ia lhe olhar bem no estalar do anoitecer e na cara de pau dizer que você não tinha nada a ver com a criação que Ele criou. A canoinha era feita de vida e você tinha entrado nela sem saber. Agora íamos lá peixando como quem ser-ei-a.

Eu sempre desconfiei que você sabia quem tinha feito a canoinha, mas ela era pequena demais por seu gosto e isso lhe enfezava que só eu sei. Melhor dizer que ela não era da ordem do que era feito, mas do que existia assim mesmo. Sem motivo, nem explicação. E de tanto querer entender porque remar pra baixo jogava água pra cima, você jogou fora os remos e pôs a mão no queixo enquanto de lá pra cá nos encontramos.

Lembrei que amanhã você comemora mais uma data na canoinha. Ah, canoinha pra passar rápido e correnteza pra arrastar tudo que é lembrança, meu Deus do céu.... Eu queria saber qual foi a isca que você usou naquele dia que eu peguei carona na tua inefável canoinha. Sei que ao terminar o abraço de agradecimento eu senti um treco estranho aqui no peito. Acenei com a mão o que transbordou do meu olhar e agora veja: lembrei que amanhã tua canoa faz mais uma era e fiz pra ela esse versinho pra batizar outro pôr-do-sol:
















A vida é uma canoinha com remo, sem pressa

A vida é feito uma cheia: de isca, de rio

Viver é perigo pra quem nada, e não pesca
Pra quem se afoga no raso e planta no estio


Por isso, moço menino, relembra o teu tempo:
Leva a canoinha sem rumo, com pé descalço
peito aberto, olhar antigo, desejos ao vento

força no braço, fé sem cansaço e amor em maço.



Pois é isso e só.
Que tua felicidade cheia de birra continue a combinar com minha roupa de domingo a tarde. Um dia, canoinha-vida, eu entro de vez em você...


Com felicitações das margens (do rio e do papel),
Samelly Xavier