sábado, 5 de junho de 2010

SÓ PODENDO

Passei uns dois anos estudando (ora querendo, ora sem querer) sobre uma corrente literária chamada Estética da Recepção. Em suma, ela fala que o sentido do texto não está nem no texto, nem no autor, mas no leitor que lhe atribui significados pessoais. Sem o leitor, o texto não diz "nada". O texto que segue abaixo é um exemplo vivo disso. Ele foi escrito num momento de profunda tristeza que se confundia com reflexão extrema. Desde que foi publicado (em 2005, no meu segundo livro) todo mundo que o lê, diz que ele é um texto engraçado, divertido, irônico. Bendito leitor que o ressignificou


Dia desses, eu me apaixonei muito, mais muito mesmo e dei o fora porque sabia que aquela paixão toda só podia não ser paixão. “Não é estranho que o homem da minha vida apareça justamente na minha vida?”, vi isso num filme fantástico “A dona da história” e achei tão certo que só podia não ser certo.

Foi na mesma época que me promoveram no trabalho, ganharia quase o dobro do que ganhava. Adivinhem? Pedi demissão. Era tanto dinheiro que só podia não ser mesmo dinheiro.

Aí eu fiquei sem amor e sem salário. Resultado? Fui num psicólogo que me disse quase as mesmas coisas que a cartomante tinha dito: que era só uma fase, que eu ainda ia ser muito feliz. Fiquei tão aliviada que só podia não aliviar. Tanta sorte assim só podia não ser sorte.

Saí determinada a conseguir outro emprego e outro amor e só podia não conseguir.

Estava eu, em minha busca, quando aconteceu algo que estragou tudo: me chamaram pra trabalhar. Por que justo eu? Com tanta gente desempregada, qualificada, acharam de garantir a vaga logo pra mim? Era tão fácil que só podia não ser fácil. Era tão arriscado que só podia não arriscar.

Conheci um cara que, de cara, se apaixonou por mim, queria até casar. Esquisito que com tanta mulher no mundo, ele quisesse se casar logo comigo. Foi isso que eu lhe disse, e ele me falou que eu era diferente. Pensei: se eu sou diferente e todo mundo é diferente, então eu era igual a todo mundo em ser diferente. Isso era tão simples que só podia não ser simples. Assim lhe disse um não mesmo querendo dizer sim. Só que quando eu quis dizer sim, achei que já tinha passado a vontade e era melhor dizer não. Era tanto desejo que só podia não ser desejo.

Você deve estar pensando que eu só posso ser maluca, e na verdade só por isso eu não sou. Porque se você parar pra pensar, e só por isso, não vai, eu faço as mesmas coisas que você . Porém quando você faz, acha tão normal que só pode não ser.

E por isso tudo, pra me consolar, resolvi escrever esse texto. Mas ele é tão besta que só pode não ser besta, e por isso dá uma vontade de rasgar e eu só posso não rasgar.

Fico eu aqui, perdendo tempo enquanto você não vai nem entender e só pode.


Samelly Xavier, no livro Universo - o verso une (RG Editora, 2005).

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14 Comments:

Anônimo said...

Fui o primeiro a comentar. Mas pq eu, justamente eu? Com tanta gente por ai correndo como loucos, eu tinha que chegar primeiro? Louco mesmo é o texto e por isso só podia não ser. Decidi escrever estas besteiras, que de tão besta só pode não ser. Fico aqui pensando: se estava triste na hora que escreveu, só podia não ta... (lucchesi).

Unknown said...

Engraçado que faz tempo que vinha aqui... E hoje me deu vontade... Porque hoje? Justamente neste texto? Mas se eu vim hoje, provavelmente porque eu não vim... Se eu tive esse desejo, é porque eu realmente não o tive... E por aí vai, ou não.

Lucy said...
Este comentário foi removido pelo autor.
k. said...

pensei em não comentar e só por isso eu vim =)

foi um dos que mais gostei ^^

Unknown said...

Genial, magistral...

Denilson Rocha said...

e eu, que nos últimos tempos exercitava aqui (ou alí) o dom de discordar da moça, justamente por ser este um texto típica e samellicamente discordável, fui com tanta sede ao pote que não encontrei água de discórdia nenhuma.
Pois é... o Narciso aqui achou algo de espelho no palavrório da moça (entrou pra galeria "textos que eu poderia ter escrito").

Chato isso, nem dá pra ser chato... :P

Anônimo said...

Esse seu texto sai de nenhum lugar e vai para lugar nenhum,. Pode até ter sido sua intenção, mas entendo que voce já escreveu coisas melhores. Ou será que não fui capaz de não entender nada? Penso que esta possibilidade é bem plausível.
As coisas não acontecem com agentem, exclusivamente, elas acontecem apenas.

Anônimo said...

O texto "anônimo fui eu quem escrevi. Valmir Lopes, cunhado de greace (será que é assim que se escreve). Bem, deve não ser, pois estava muito fácil para que justamente eu tivesse que escrevê-lo)

Sim, foi anônimo porque me pediram aqui uma senha que eu não tinha ai me atrapalhei todo.

Em todo caso, Bom domingo e abraços sinceros

Anônimo said...

Esse eu já tinha lido, mas sempre é um prazer reler!
Seus textos sempre tocam fundo na alma... Feitos e lidos no momento certo!
Enfim, vc arrasa, amiga!


:************************

Aline Luz

Camila Souto said...

Passando pra mandar um beijo. E pra dizer que esse texto é genial. Até agora não achei irônico ou engraçado, e só podia. ;p

Beijos e saudade!
;*****

Maria said...

Ele é realmente muito bom. Uma ironia tão boa de ler. Só podia ser seu mesmo.

Beijos

Candy said...

Não somente nos textos é o leitor que da o significado. Mas, na vida como um todo, somos nós que damos significado a cade pequeno acontecimento.
;)

*o texto é maravilhoso de ler. Engraçado, irônico, filosofante...

obg pela visita ;)
um beijo e bom fds!

Silver Felix said...

Perfeito!

Moema Vilar said...

"Era tanto desejo que só podia não ser desejo"

Nossa, minha alma gêmea ... estou passando por uma situação assim...

amo seus textos!

Moema Vilar