domingo, 14 de fevereiro de 2010

...E OUTRAS...


(Meu discurso que concorreu a ser representante dos formandos da UFCG 2009.2, mas não foi selecionado. Com exclusividade - rá, rá, rá! - para os leitores do São Seus olhos - rá, rá rá, de novo!)


Cada palavra com suas mil faces ocultas, diz o poeta. Gosto de pensar nos mistérios que carrega o verbo formar-se. Durante estes últimos anos, já nos transformamos, nos reformamos, nos informamos e eis que agora nos avisam que nos formamos, enfim! Nos formamos...O verbo não deixa resquícios, não abre espaço para dúvidas, a verdade é toda essa: nos formamos! Estamos atestadamente prontos, inteiros e completos!

Se antes estávamos em formação, agora o futuro cruza as pernas e dá uma piscadela pro passado e a sensação de déjà-vu nos faz continuar sendo o que ainda vamos nos tornar. Finalmente já não precisaremos fazer a caligrafia da alfabetização, nem estudar a tabuada da primeira série. Já não nos mandarão pesquisar os tipos de folhas das árvores, nem os nomes científicos dos insetos como fez a tia do quinto ano. Já não haverá atividade pra casa, nem a preocupação em não comprar um caderno muito infantil pro nono ano (que no meu tempo, aliás, se chamava oitava série). Já não carece de perguntar ao professor do terceiro ano qual tema vai cair na redação do vestibular ou qual livro tem os melhores exercícios de Física. Também se tornará obsoleto combinar com os colegas quem fica com quais páginas para apresentar o seminário da eterna semana que vem; nem fará mais o menor sentido madrugar fazendo resumos para o congresso que foi visto no cartaz do corredor da universidade e garantiu aquelas milhares de fotos bonitas, as quais mostraremos pras gerações futuras com saudosismo.

Pois é... Aquela imaginação distante dos nossos pais, orgulhosos e emocionados não é mais imaginação. Estão aqui – no presente sem pudor – as lágrimas que eu suponho que minha mãe já começou a derramar e eu devo estar me segurando pra não fazer o mesmo. Isso tudo porque, afinal, nos f-o-r-m-a-m-o-s. E daquela massa bruta, cheia de inquietações e rodopios na hora do recreio que éramos nós, sobrou essa lapidação cheia de outras inquietações e de outros rodopios que vamos sendo... Hoje nos retocam cada detalhe, limpam nossa beca e ajeitam nosso capelo, nos comunicando, entre aplausos e recomendações que de agora em diante é com a gente.
Apesar disso, ou talvez por isso, absurda e poeticamente, a sensação antiga e já tão conhecida, do primeiro dia da escola parece querer reaparecer nesta cena. A impressão que tenho é que os pais continuarão na porta, acenando e desejando boa sorte e nós continuaremos sem saber ao certo em qual fila devemos ficar para acompanhar nossos coleguinhas. E da mesma forma de sempre, mesmo sem saber ao certo o porquê, passaremos por porteiros e daremos “bom dia” sonolentos. Sentaremos em carteiras e reabriremos a lição que já saberemos de cor e mesmo assim todo dia será novinha em folha (e em flor).

Quando hoje à noite voltarmos para casa não seremos mais o número da matrícula que dia desses nos carimbaram numa fila. Seremos o que escolhemos ser. Seremos, finalmente, quem escolhemos ser quando um dia – alguns muito convictos, alguns entupidos de dúvidas – marcaram uma bolinha onde tinha escrito “opção de curso”. Pois não é à toa que dizem que a vida segue seu curso e o curso agora compõe nossa vida. A partir deste momento, seremos o que justifica cada manhã mal acordada, depois de cada noite mal dormida. Seremos lembrança dos bancos das praças nos intervalos de aula e dos lanches divididos, os quais agora são responsáveis por termos feito grandes amigos que ora lembrarão do nosso aniversário, ora não.

Quando amanhã – sem pressa – acordarmos, incrivelmente seremos também a possibilidade de fazermos qualquer coisa (inclusive nada)! Talvez alguns, mais pragmáticos ou pessimistas, olharão pela janela como se o sol fosse só o repetido amarelo de sempre. Mas eu prefiro acreditar que os colegas que neste momento represento acordarão amanhã com aquele ar de idealista que só os jovens sabem ter, segundo nos disseram os jovens de antigamente. Que enfrentarão com integridade e frio na barriga cada incerteza que as novas colheitas representarão em nós. Que não se insubordinarão aos pensamentos frustrados de quem se limita a viver a formalidade vazia, o intelectualismo barato, as mesas redondas presididas por mentes quadradas. Os limitados, aliás dirão que qualquer coisa é o máximo que podemos ser e se concordarmos com eles seremos propagadores de limitações, quando, na verdade podemos e devemos ser representantes das boas novas. Pensei em não citar ninguém neste discurso, mas o velho Nietzche insiste em aparecer nessas horas: “os que dançavam foram considerados loucos por aqueles que não podiam ouvir a música”. Sendo assim, dancemos! Dancemos e cantemos! “Cantemos a canção da vida, na sua própria luz consumida”, pediu o amado Mario Quintana.

Quero que quando nossos filhos e netos estiverem aqui, repetindo o futuro, as lágrimas que tivermos de derramar sejam de recordações inefáveis e não de vergonha melancólica ou cansaço precoce. Hoje o ritual se repete, amanhã a vida continua. “Desde quando a senhora vem sentido essas dores?”, perguntarão alguns de nós, em escritórios de azulejos brancos; “A logomarca estará pronta semana que vem, pode deixar”, dirão outros, em saletas coloridas e cheias de pessoas pra lá e pra cá; “Gente, apressem aí que eu vou apagar o quadro”, dirão vários outros, cheios de provas de papel e de fogo; “Projeto viável e seguro, aqui está a planilha” afirmarão vários, após reuniões, cafés e explicações em slides. Isso tudo por que cada um dos que aqui está foi formado pela UFCG. E não estou falando simplesmente do atestado profissional.

Muito mais do que profissionais com formação comprovada, vejo hoje seres humanos completos, a quem nada falta para se fazerem mais do que sintomas de uma época. Sim porque até agora vim falando com esse tom que para alguns deve soar ingênuo. Mas, sabem, eu prefiro a ingenuidade à esperteza. Os espertos passam a vida se cansando, arrumando um jeito de se fazerem mais espertos e sempre achando um mais esperto com quem rivalizarão. Os ingênuos, não. Passam a vida redescobrindo o encanto possível, o gosto de irrepetível que cada dia oferece. Por isso acredito que muito mais do que formados, estamos formados e a universidade – como revela os segredos ocultos em seu nome – abriu em nós estes universos que incorporamos; agora podemos aceitá-los, rejeitá-los ou refazê-los, só não devemos ser indiferentes uns aos universos dos outros. Porque a indiferença é o câncer mais doloroso que consigo conceber. Por isso disse que não nos quero ver sendo sintomas de uma época. É fácil ser cinza na inquisição, mas é muito bom ser brilho de estrela por trás de nuvem poluída.

“Vamos de mãos dadas” falou Drummond. E hoje são justamente nossas mãos que assinarão nossa formatura, que atestarão nossa completude. Hoje, nossas mãos estarão entrelaçadas, seja em oração de agradecimento, seja em união com aqueles que amamos.

Nos colocaram numa mão um diploma e na outra um futuro. Os passos são todos nossos, as estradas estaremos construindo. Meu último pedido? Vamos todos de mãos dadas...

Samelly Xavier

1 Comment:

Álvaro Albuquerque said...

Muito lindo o texto!!
Emocionei-me por vários momentos ao pensar na minha formatura (falta 1 ano, mas jajá chega haha)

Parabéns... belissima construção!

Beijos Formados! =)