quarta-feira, 30 de junho de 2010

LUZ

Falei neste texto ontem, daí deu vontade de postá-lo aqui. Contexto: quando eu estava no terceiro ano, meu professor querido de Redação - Marcelão - resolveou pregar uma surpresa em mim e nos meus colegas terceiristas: colocou dois textos meus para comporem as questões da sua prova. Por um lado, foi uma das maiores homenagens que eu já recebi na minha vida. Por outro, uma sutil (talvez nem tão sutil assim) decepção: como o próprio professor disse, só na minha prova e na de outra colega (de 100 e poucos alunos) não havia reclamações sobre a escolha dele. Críticas, discussões, problemas que me ajudaram a amadurecer ainda cedo e que hoje vejo como experiência bem aproveitada. Na época, lembro que numa mensagem que Marcelão fez pra mim (em resposta a uma minha para ele) ele disse algo como: "seus textos estão a anos-luz de percepção do mundo e a cada ano eles falam sobre uma nova luz". Depois desse comentário, surgiu o texto que segue. E que nossas luzes resplandeçam sem nos cegar!

Luz

Para Marcelão

Primeiro, faíscas. Pequeninas. Distantes. Quase imperceptíveis. Similar àqueles fogos de São João aproveitados pelos pequenos. Brilho artificial, porém existente. Iluminação simplória.

Depois labaredas. Fortes, unidas, seguras, certeiras. Agora sim, brilho real. Aqui, o que reluz é ouro. Incêndio desvairado, por ventura, sem explicação. Brasa que carece ser passada de mão em mão, de olho em olho. Assim tecemos resplandecências.

Por fim, restam-nos cinzas. Supostamente apagadas, queimam. E como queimam! Queimam com a experiência de quem um dia foi fogueira, de quem souber brilhar. É um afogo dos deuses, parecido com aquele que Zeus mandara certa vez em forma de trovão para vislumbração humana.

Todo texto é uma luz. Que é chama. Que chama. A princípio em formas de palavras soltas, vulgares, sem qualquer originalidade. Puro artificialismo. Porém, mesmo em néon, floresce. Fraternizando-se entre si, formam verdadeira combustão. É nessa hora que papel vira lenha, e lápis, querosene. Só assim para o vento propagar seu cheiro (significado, razão) por caminhos inimagináveis, para pessoas pré-históricas que desconhecem o fogo. Assim, a cada nova idéia esquentada na escrita, ressurge o mesmo espanto das cavernas e as mesmas sombras de Platão, pois apenas onde há luz, há sombra.

Caso haja (eu sei que há) cinzas, estas são os conhecimentos ultrapassados, contudo que ainda servem de alicerce para novo brilhar.

Escrever é iluminar. É incandescer visões e quase como no bíblico momento de Paulo de Tarso, cegar para poder enxergar, de verdade.

Quem sabe até não seja mesmo, a palavra escrita minha nave inter-galaxiar por onde viajo e percebo luz de estrelas que estão a anos-luz do que eu mesma possa compreender. Provavelmente, em outros anos, luzes se, me, nos descobrirão.

Samelly Xavier (no livro Universo: O verso une)


Aproveito a oportunidade para falar rapidinho do lançamento do livro de Thiaguito (mais conhecido como Thiago Lia Fook). Embora tendo chegado atrasada e só recitado um poemeto, foi muito feliz vê-lo em seu novo projeto, ainda mais ao lado de Flaw e Hélder. Tríade adorável! Para saber mais sobre o livro, acessem o blog dele: http://arriscos.blog.terra.com.br/




sábado, 5 de junho de 2010

SÓ PODENDO

Passei uns dois anos estudando (ora querendo, ora sem querer) sobre uma corrente literária chamada Estética da Recepção. Em suma, ela fala que o sentido do texto não está nem no texto, nem no autor, mas no leitor que lhe atribui significados pessoais. Sem o leitor, o texto não diz "nada". O texto que segue abaixo é um exemplo vivo disso. Ele foi escrito num momento de profunda tristeza que se confundia com reflexão extrema. Desde que foi publicado (em 2005, no meu segundo livro) todo mundo que o lê, diz que ele é um texto engraçado, divertido, irônico. Bendito leitor que o ressignificou


Dia desses, eu me apaixonei muito, mais muito mesmo e dei o fora porque sabia que aquela paixão toda só podia não ser paixão. “Não é estranho que o homem da minha vida apareça justamente na minha vida?”, vi isso num filme fantástico “A dona da história” e achei tão certo que só podia não ser certo.

Foi na mesma época que me promoveram no trabalho, ganharia quase o dobro do que ganhava. Adivinhem? Pedi demissão. Era tanto dinheiro que só podia não ser mesmo dinheiro.

Aí eu fiquei sem amor e sem salário. Resultado? Fui num psicólogo que me disse quase as mesmas coisas que a cartomante tinha dito: que era só uma fase, que eu ainda ia ser muito feliz. Fiquei tão aliviada que só podia não aliviar. Tanta sorte assim só podia não ser sorte.

Saí determinada a conseguir outro emprego e outro amor e só podia não conseguir.

Estava eu, em minha busca, quando aconteceu algo que estragou tudo: me chamaram pra trabalhar. Por que justo eu? Com tanta gente desempregada, qualificada, acharam de garantir a vaga logo pra mim? Era tão fácil que só podia não ser fácil. Era tão arriscado que só podia não arriscar.

Conheci um cara que, de cara, se apaixonou por mim, queria até casar. Esquisito que com tanta mulher no mundo, ele quisesse se casar logo comigo. Foi isso que eu lhe disse, e ele me falou que eu era diferente. Pensei: se eu sou diferente e todo mundo é diferente, então eu era igual a todo mundo em ser diferente. Isso era tão simples que só podia não ser simples. Assim lhe disse um não mesmo querendo dizer sim. Só que quando eu quis dizer sim, achei que já tinha passado a vontade e era melhor dizer não. Era tanto desejo que só podia não ser desejo.

Você deve estar pensando que eu só posso ser maluca, e na verdade só por isso eu não sou. Porque se você parar pra pensar, e só por isso, não vai, eu faço as mesmas coisas que você . Porém quando você faz, acha tão normal que só pode não ser.

E por isso tudo, pra me consolar, resolvi escrever esse texto. Mas ele é tão besta que só pode não ser besta, e por isso dá uma vontade de rasgar e eu só posso não rasgar.

Fico eu aqui, perdendo tempo enquanto você não vai nem entender e só pode.


Samelly Xavier, no livro Universo - o verso une (RG Editora, 2005).

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