quarta-feira, 5 de maio de 2010

MORAL DA HISTÓRIA

Maio é um dos meus meses preferidos. Este é um dos meus textos preferidos. Fiz esse texto um dia depois de ter completado 18 anos e lembro exatamente o porquê de tê-lo feito. Estou vivendo uma das minhas épocas de vida preferidas (chama-se presente). Então...


Quando eu tinha três anos, a maior dor que sentia, era quando desejava aquele imenso doce e não compravam pra mim. Vá dizer para uma criança de três anos que é só um doce. Hoje, quase obesa, por mais que coma, nunca mais o gosto daquele doce foi igual. Paladar de criança deve ser mais apurado. Agora eu sei que não se pode fazer todas as vontades infantis, porém meus olhos arregalados daquela época não conheciam depois; queriam naquele momento, já. Era decepcionante um "não". Depois, passou.

Nos meus cinco anos, quando eu fui a primeira vez na escola, tudo o que eu mais queria era ser a escolhida da professora naquela cantiga de roda. "Da menina mais bonita quero um beijo e um abraço". O beijo e o abraço procurados pela professora não foram os meus. Fiquei péssima. Saí da escola. Vá dizer para uma criança de cinco anos que aquilo era só uma cantiga. Depois ouvi muitas músicas, chorei com algumas delas, outras tantas me trouxeram lembranças, para não dizer dor-de-cotovelo. Foram até várias serenatas com muito "você é linda, mais que demais" ou "eu tenho tanto pra te falar, mas com palavras não sei dizer". Marcou, lógico que marcou, contudo nunca foi o abraço que eu esperava da minha primeira professora. Depois aprendi que eu era só mais um serzinho no meio da multidão e não deveria, nem poderia ser sempre a escolhida. Na época, parecia que eu não era digna daquela encantadora mestra. Porém, depois, passou.

Quando eu menos esperava, fiz oito, nove anos e fui convidada para ser rainha da primavera! Nossa! Eu, rainha da primavera. Antes das flores, peguei catapora. Queria porque queria ir. Minha mãe obviamente, não deixou sob o ótimo argumento que eu iria empestar meus amiguinhos com a doença. Vá dizer para uma futura ex-rainha da primavera que era só alguém ir em seu lugar. Depois eu aprendi que saúde é mais importante que vaidade e que não há nada tão insubstituível que não seja substituível. Aquele dia foi trágico. Coçava a pele e fervia a mente. Depois, passou (a coceira, a fervura, tudo).

Com onze, doze anos veio o primeiro namorado. Nada que toda menina já não tivesse passado. Apenas, inédito pra mim. Apaixonar-me por um colega de rua que estudava na mesma escola que eu. Disso para todos os outros passos foi um passo: apresentação, conversas, aproximação, convites, amizade colorida, indução, danças coladinhas, beijo, muitos beijos e fim. O primeiro amor se foi. Tão banal. Mas vá dizer para uma apaixonada de onze anos que o primeiro amor dura noventas dias. Senti-me fracassada em não conseguir perdurar um amor que iria durar pra sempre. Depois aprendi que era só o primeiro que marcaria e passaria e que muitos estariam por vir. No dia do fim, fui eu quem, triunfantemente, disse a velha frase "está tudo acabado entre nós". Ele saiu e fui chorar sem lhe dizer que quem estava acabada era eu. Depois de umas semanas, alguns lenços, e longos telefonemas, passou.

Logo em seguida vieram novas datas. Treze anos, outra paixão; catorze, mais uma; quinze, uma linda; dezesseis, uma intensa; dezessete, uma desastrosa; dezoito, uma quente. Novas lágrimas, novos amores, novos fins nunca esperados. Vá dizer pra uma jovem em pleno "sonhamento" que aquilo era só coisa da idade. Depois aprendi que era mesmo. Só depois, muito depois. E se duvidar, até hoje meu coração trepida, eu ainda sonho e me frustro, porém tenho melhores disfarces, afinal de contas eu já sei: amanhã ou depois, passa.

Nesse meio tempo veio o primeiro emprego, o primeiro salário. Vá dizer pra uma jovem empregada que é só um salário que não dará pra quase nada. Era um sonho permutado em moedas! Com uns meses veio a demissão, o arraso de sempre, o esgotamento, a sensação de incompetência, que... adivinhem? Isso mesmo! Depois, passou.

A primeira transa, o primeiro susto (Ufa! Ainda bem que chegou!), o primeiro casamento, a primeira briga, o maior dos arrependimentos e a sensação de que agora eu já conhecia tudo da vida e era dona do meu próprio nariz. Vá dizer a uma mulher de meia idade que ela também não entende nada da vida. Depois eu aprendi que só entendia um pouquinho, só um pouquinho do pouquinho que eu havia vivido, entretanto como minha vida não era reprise, sempre tinha algo novo e inesperado por vir. Interessante que sempre incomodava, magoava e era bom. Depois, anos depois, eu aprendi que era assim mesmo.

Como não é surpresa, vieram os filhos e o espelho do que eu vivi, neles. O medo de não saber ensiná-los a não sofrer, e os erros e as injustiças. Vá dizer pra uma mãe que ela também, às vezes é injusta. Hoje eu admito que fui, mas passou, graças a Deus, passou. E depois vêm os netos e a gente passa a mimá-los o tanto que gostaria de ter mimado os filhos, e tenta ser mais legal pra errar menos. Vá dizer pra uma vó que no fundo, no fundo, ela quer pedir desculpa aos filhos através dos netos. Depois a gente entende que é bobagem e, afinal de contas, os netos também crescem, aí, depois, passa.

Até que um dia, depois dos oitenta, noventa, sabe-se lá, a gente senta num terraço florido, as pernas um tanto trêmulas, a voz mais baixa, a vista cansada. Os netos estão na escola, os filhos estão trabalhando, a vida está acontecendo, e a nossa mágoa pelo doce negado da infância, nosso trauma da ciranda da escola, nossa dor do primeiro amor acabado, nossa demissão e desespero imediato, nosso primeiro casamento desfeito, vêm tudo à tona, em frenesi.

Nosso imediatismo infantil, nossa velocidade jovial, nossa sensação de "sabe tudo" da meia idade se fundem num único êxtase real e antes disso, atemporal. Como se agora, só depois, é que aprendêssemos a moral da história: que nada passa porque na verdade quem passou fomos nós. E agora é só esperar a morte passar, mas vá dizer pra uma senhora que chegou aos oitenta, noventa anos que a morte também passa...


Samelly Xavier, no livro
UNIVERSO: O VERSO UNE (RG EDITORA, 2005).
FAVOR RESPEITAR DIREITOS AUTORAIS


12 Comments:

Luisa Cutrim said...

Amei o texto e todo seu blog!
Te acompanhando agora!
Beijos!

Danielle Nóbrega said...

SENSACIONAL!! TALENTO SEM FIM!!
BEIJOOOOOS!

Lucy said...

Vai dizer pra mim "que nada passa porque na verdade quem passou fomos nós"...

adoro esse texto =)

Unknown said...

Vá dizer pra mim que eu não posso amar tanto alguém que escreve tão lindo assim...

Abraço apertado,
Da sua fã sem número.

Anônimo said...

Adorei !!!
Cada vez que vc vinha com um "e quem disse que "...rs...parecia q se desmanchava o tom austero das frases pra no fim nos oferecer uma risadinha.
Bjs .
Adoro ler seus textos!!!

Luisa (SP)

Anônimo said...

Puxa, Samelly que texto lindo!!!!!!!!!!!!

Bateu saudade de você.

Bjs,

Hebe

Unknown said...

mas vá dizer para um amigo q mora longe q é fácil controlar a saudade!

lindo texto sam... me coloquei no lugar da senhora, sendo senhor e olhando para trás...
e a imagem, perfeita!

muita saudade!
grande beijo!

glauber (RJ huehue! vai q c não sabe qual é , né?!)

Mulher de Fases said...

Samelly,
Seus textos sempre maravilhosos me encantam!Quero passar a vc o premio dardos.
Recebi de um blog e devo repassá-lo a outros 15 que escolher.Um deles é vc pelos seus ótimos textos...
Abços
Daniela

Flaw Mendes said...

... Vá (eu) dizer pra uma amiga que sinto saudades...
Que ela vai dizer que é mentira minha... que eu sou isso e aquilo "véi"...

Num vim comentar não, vim só dizer da saudade.

Xero!

Identidade said...

Perfect =D I miss you

Maria Luísa said...

Vá dizer pra mim q não é pra chorar toda vez q ler esse texto.
Fico sempre encantada com seu talento!
Esse também é um dos meus preferidos.

bjuu

Pedro Aleixo said...

maravilhoso.. e vai dizer a um jovem de 22 anos que não é.. hehe