segunda-feira, 29 de junho de 2009

QUEM É CASA, TEM CASA


Eu quero dançar tango na Argentina, conhecer as pirâmides do Egito, tirar foto em cada paisagem que inspire um possível cartão postal do Brasil. E quero voltar pra casa. Eu quero alugar um jipe velho, desses cujos donos são ciumentos e meio carecas e ir por muitas cidadezinhas ouvindo e sendo novidade. Conhecer menino besta, velho sabido e o contrário. Mas, depois, quero voltar pra casa.

Voltar pra casa é pedir arrego da euforia das estradas. Voltar pra casa é o que justifica a viagem. Eu nunca acreditei muito nos "cidadãos do mundo", eu sempre achei fundamental ter pra onde voltar. A volta justifica a ida e não o contrário. Quando a poeira vira banalidade está na hora de voltar pra casa. E todo mundo precisa de ter casa pra voltar.

Porque é depois dos passeios que o sofá mofado fica mais aconchegante. Depois das roupas sujas jogadas lá fora é que se pode vestir a camisola rasgada e dormir num travesseiro que deve, por osmose, assumir o formato da nossa cabeça. É comprovado cientificamente (se não for, um dia será!): não existe travesseiro no mundo igual de bom ao do seu quarto! Depois de fotos e histórias há de se chamar para tornear uma mesa na cozinha,todos os que ficaram, e contar cada especulação e risada feitas de recordações boas.

Deve ser assim no tal amor... Um dos amigos mais queridos me perguntou hoje, debaixo de uma árvore, por que é que, depois que a gente decide que quer um relacionamento amoroso com alguém isso assume assim, esse significado tão importante na nossa vida, dando-nos essa sensação de incompletude caso não se esteja acompanhado. E a resposta me veio mais imediata do que eu imaginava: porque ter um amor é ter casa pra voltar. É ter a quem contar as viagens de cada dia: do rapaz que pediu esmola no sinal e você deu um pirulito; da moça triste no balcão pra quem você ofereceu uma nota de dez e um sorriso e só pediu troco do primeiro; dos carros que buzinam no sinal verde enquanto você escuta música lilás e dá a vez pro senhor de blusa branca e bengala passar...

É bom viajar e às vezes vital fazê-lo sozinho. Mas é bom ter pra onde voltar. Para o amado que nos doa abraços - esta espécie de parede que firmam quadrados; e beijos - que viram sempre uma possibilidade de janela, no ar, no ar, no ar e no clima.

Querer e aceitar menos que isso é viver em pousada. Num conforto impessoal. É contar pra dona da pensão suas aventuras e ela lhe sorrir hospitaleira, mesmo que você e ela saibam que ela faria isso com qualquer hóspede. Eu não quero ser qualquer hóspede. Eu quero ser o dono da casa com toda a posse que isso pode sugerir, mas, principalmente, com todo o jardim que eu posso plantar no olhar de quem amo. Eu não quero ser dona de pensão. Não quero um balcão que me separa de um abraço, nem um sorriso pendurado de boas-vindas para quem vier de passagem. Eu quero ser porta de entrada seguida de tapete e som na sala.

Cheguei a conclusão que nossa/minha (cof, cof) geração é descrente por preguiça e comodismo. Acreditar dar trabalho. Requer faxina: pratos limpos, roupa e alma lavada... Acreditar no amor exige fatiar o discurso do "eu pego, mas não me apego" em sete pedaços de incerteza e levá-lo ao forno em banho-maria, até que a casca doure e você enfie a faca. Depois de todo esse processo, a maior parte vai estar murcha e do doce azedo de cada medo da entrega, você sugue, lamba e chupe o néctar do encanto possível e contínuo. Você tome banho maria mais josé, porque na banheira das casas só cabem corpos se vêm de dois. Esse, aliás, é o tipo de experimento alimentício que só pode ser feito na nossa casa. Jamais em hotel, motel ou número limitado de estrelas.

Que deixemos claro meu respeito a todo tipo de habitat. Natural ou não. E que fique translúcidas minhas aspirações: mesa de domingo, frigobar de sábado, pano de prato e três xícaras de chá bem misturadas, toda noitinha. Sem perdão de qualquer trocadilho, a questão não é casar, nem ter um caso: é ser casa de alguém, é ter casa em alguém. É frio na barriga sem prazo de validade e sem ser porque a geladeira estava aberta.

Eu quero viajar, viajar, viajar... Nas estradas, na maionese, ou no meu mundinho. Mas ao final do dia, voltar pra casa, de madrugada, deixar o carro na calçada, as malas e os malas jogados no lixo; procurar a chave feito ela fosse palavra-chave; girar a fechadura já prenunciando o giro do abraço e em seguida encontrar teu sorriso, acalentando minha paz. Por fim, dormir de conchinha só pra lembrar, de novo, o cheiro do mar que tem seus cabelos...

Samelly Xavier, esvaziando(se) da casa velha alugada

terça-feira, 16 de junho de 2009

VEJAM O QUE É INVEJA:


Dizem os psicólogos que numa visão mais genérica, há um certo tipo de inveja que faz bem. Ocorre quando você, além de desejar ter o que o outro tem, faz por onde conseguir o mesmo, servindo como impulsionador para construir seus próprios méritos.

“Por que Fulano pode ter e eu não?”, esse é o tipo de questionamento que a maioria das pessoas fazem. Uns enveredam para o caminho do complexo de inferioridade: “Ele tem porque é melhor que eu, porque pode mais que eu”, esses serão os novos clientes dos psicólogos citados acima. Outros, normalmente os mais vaidosos, topam o desafio que eles mesmos se impingem: “E quem disse que eu não posso ter o mesmo? Vou mostrar que posso ter tudo e muito mais. É o que poderíamos chamar de Síndrome da Laura (pra não esquecer a vilã charmosa da novela), esses são os que não medem esforços para conquistar o que desejam. Se são felizes? Maquiavel e sua máxima “os fins justificam os meios” que responda.

Mas o fato é que hoje eu senti inveja. Não que nunca tivesse sentido antes. Mas, em verdade, não é um sentimento que me incide muito. Contudo, especialmente hoje meu desejo de possuir algo de outrem foi arrebatador. Tudo o que mais desejei foi possuir aquela bicicleta. Não sei a marca, nem a cor, nem o tamanho exato. Era pequena, pelo jeito da nova dona. Creio que era rosa ou vermelha ou qualquer cor de menina (porque afinal de contas, cor tem sexo). Eu nem cheguei a ver a tal bike, mas a desejei vorazmente.

Numa loja de eletrodoméstico, enquanto aproveitava o dia ensolarado depois de semanas de chuva, para “resolver as coisas” (não é assim que a gente diz?), estava eu, numa fila curta e lenta, naqueles momentos que nem se pensa, nem se lamenta, nem se faz nada, exceto olhar pra frente, torcendo que a fila ande logo. Acrescido ao barulho natural dessas lojas que quase esperneiam por clientela, une-se a voz afável de uma criancinha que deveria ter uns cinco anos. À esquerda da fila de pagamento, estava o local onde se recebia mercadorias compradas e lá vibrava uma menininha de saia jeans curtinha, camisa rosa com um ursinho na frente, meias coloridas dessas que estão na moda, e claro, marias- chiquinhas no cabelo, com amarradores coloridos.Enfim, uma típica menina bem cuidada de nossa época. E ela pulava, gritava, pulava, gritava e pulava tanto que por vezes parecia gigante. Assim tornou-se, se não era intenção, o centro das atenções. Sorri eu, sorriu vendedor, caixa e a própria mãe, de certo que esta última sorria um sorriso com esforço, como se envergonhada pela alegria da filha sapeca.

Pois saibam que a menininha travessa era dona da minha desejada bicicleta. Ela rodopiava pela loja, gargalhando pra todo mundo e dizendo “Ganhei minha biciquetinha! Ganhei minha biciquetinha” e a sua “biciquetinha” era tudo que fazia o mundo ter razão.

Ela não sabia quem era Bush.Ela não tinha medo de ser assaltada.Ela não sofreria se perdesse um ente querido.Ela não discutiria horas com seu namorado e desligaria o telefone na cara dele, chorando. Ela não se sentiria só, perdida no mundo. Ela não reclamaria dos preços absurdos de tudo. Ela não teria que estudar ou trabalhar no que não gosta só por que ela acreditava “ser o jeito”. Ela não se enojaria com poderosos. Ela não desconfiaria das boas intenções das pessoas. Ela não sentiria dores físicas ou da alma. E por quê? Por que ela era dona da “biciquetinha”. Ela acabara de criar sonhos eloqüentes através daquele brinquedo. Ela teria a vida toda pela frente pedalando. Cair, chorar e depois dar risada lembrando de que após as quedas, uma vez aprendido, nunca mais esqueceria como manobrar sua “biciquetinha” Ela podia se exibir para todas aquelas pessoas estranhas da loja, por ter algo que ninguém mais possuía.

Ela carregava emoção do vento em seu rosto, ao passear com aquele mágico objeto. Ela era exaustivamente feliz em sua imaginação infantil. E o seu olhar inocente, e seu aprazimento com aquela compra me causaram tamanha inveja a ponto de chorar por almejar sua “biciquetinha”. Sim, eu chorei, chorei por desejar e saber que nunca ela me daria sua “biciqueta” e mais chorei por não lembrar onde havia perdido a minha.


Samelly Xavier (do livro Universo: o verso une - RG Editora, 2005)