Eu quero dançar tango na Argentina, conhecer as pirâmides do Egito, tirar foto em cada paisagem que inspire um possível cartão postal do Brasil. E quero voltar pra casa. Eu quero alugar um jipe velho, desses cujos donos são ciumentos e meio carecas e ir por muitas cidadezinhas ouvindo e sendo novidade. Conhecer menino besta, velho sabido e o contrário. Mas, depois, quero voltar pra casa.
Voltar pra casa é pedir arrego da euforia das estradas. Voltar pra casa é o que justifica a viagem. Eu nunca acreditei muito nos "cidadãos do mundo", eu sempre achei fundamental ter pra onde voltar. A volta justifica a ida e não o contrário. Quando a poeira vira banalidade está na hora de voltar pra casa. E todo mundo precisa de ter casa pra voltar.
Porque é depois dos passeios que o sofá mofado fica mais aconchegante. Depois das roupas sujas jogadas lá fora é que se pode vestir a camisola rasgada e dormir num travesseiro que deve, por osmose, assumir o formato da nossa cabeça. É comprovado cientificamente (se não for, um dia será!): não existe travesseiro no mundo igual de bom ao do seu quarto! Depois de fotos e histórias há de se chamar para tornear uma mesa na cozinha,todos os que ficaram, e contar cada especulação e risada feitas de recordações boas.
Deve ser assim no tal amor... Um dos amigos mais queridos me perguntou hoje, debaixo de uma árvore, por que é que, depois que a gente decide que quer um relacionamento amoroso com alguém isso assume assim, esse significado tão importante na nossa vida, dando-nos essa sensação de incompletude caso não se esteja acompanhado. E a resposta me veio mais imediata do que eu imaginava: porque ter um amor é ter casa pra voltar. É ter a quem contar as viagens de cada dia: do rapaz que pediu esmola no sinal e você deu um pirulito; da moça triste no balcão pra quem você ofereceu uma nota de dez e um sorriso e só pediu troco do primeiro; dos carros que buzinam no sinal verde enquanto você escuta música lilás e dá a vez pro senhor de blusa branca e bengala passar...
É bom viajar e às vezes vital fazê-lo sozinho. Mas é bom ter pra onde voltar. Para o amado que nos doa abraços - esta espécie de parede que firmam quadrados; e beijos - que viram sempre uma possibilidade de janela, no ar, no ar, no ar e no clima.
Querer e aceitar menos que isso é viver
Cheguei a conclusão que nossa/minha (cof, cof) geração é descrente por preguiça e comodismo. Acreditar dar trabalho. Requer faxina: pratos limpos, roupa e alma lavada... Acreditar no amor exige fatiar o discurso do "eu pego, mas não me apego" em sete pedaços de incerteza e levá-lo ao forno em banho-maria, até que a casca doure e você enfie a faca. Depois de todo esse processo, a maior parte vai estar murcha e do doce azedo de cada medo da entrega, você sugue, lamba e chupe o néctar do encanto possível e contínuo. Você tome banho maria mais josé, porque na banheira das casas só cabem corpos se vêm de dois. Esse, aliás, é o tipo de experimento alimentício que só pode ser feito na nossa casa. Jamais em hotel, motel ou número limitado de estrelas.
Que deixemos claro meu respeito a todo tipo de habitat. Natural ou não. E que fique translúcidas minhas aspirações: mesa de domingo, frigobar de sábado, pano de prato e três xícaras de chá bem misturadas, toda noitinha. Sem perdão de qualquer trocadilho, a questão não é casar, nem ter um caso: é ser casa de alguém, é ter casa em alguém. É frio na barriga sem prazo de validade e sem ser porque a geladeira estava aberta.
Eu quero viajar, viajar, viajar... Nas estradas, na maionese, ou no meu mundinho. Mas ao final do dia, voltar pra casa, de madrugada, deixar o carro na calçada, as malas e os malas jogados no lixo; procurar a chave feito ela fosse palavra-chave; girar a fechadura já prenunciando o giro do abraço e em seguida encontrar teu sorriso, acalentando minha paz. Por fim, dormir de conchinha só pra lembrar, de novo, o cheiro do mar que tem seus cabelos...
Samelly Xavier, esvaziando(se) da casa velha alugada