domingo, 18 de dezembro de 2011

À (MINHA) FAMÍLIA REGINA COELI


(Eu e minha turma da 5ª série)

Dedico este texto, especialmente, à turma de nono ano da professora Elyzama
que dias antes da escola fechar me recebeu com carinho e olhares inquietos
na mesma sala onde um dia eu estudei e recebi outros convidados.

Quando uma escola se fecha não são seus muros que se fecham, mas cada lembrança de histórias que afetaram a vida de tantos. Cada passo dado nas escadas e no conhecimento. Cada sonho de aluno, desenhado na carteira e na cabeça, com reclamação justa de adulto que nos ensina que existe hora certa pra sonhar.

Quando uma escola se fecha, fecha junto com ela outros futuros. Os meus filhos que lá estudariam não mais estudarão. Os meus netos que veriam as fotos dos seus pais na idade deles não mais a verão. Mais do que as bibliotecas, o que acontecerá com os leitores de uma escola que se fecha? Mais do que as aulas, para onde vão seus professores e alunos que ali se constituíram? Mais do que a cantina, como se medirá o tempo naqueles vinte desejados minutos de recreio? Não se terá mais o que desejar entre as 9h30 e 9h50. Não se precisará correr depois das 12h20.

Mais do que um fechamento de um prédio, um fechar bem no meio do meu coração: uma dor, um luto, uma lágrima de revolta e sentimento, feito uma mãe que abortou de susto depois de ter comprado o primeiro berço.

Justo agora que tomei gosto pelas intelectualidades escolares. Justo agora que leio Freire, Shon, Morin e todos esses que apresentam em tese de doutorados a sapiência necessária para fazer pulsar um corpo escolar, composto de pernas, braços – muitas pernas, muitos braços; cérebros e corações.

Justo agora que não tenho mais medo de errar a entrada da sala da quinta serie e rirem do meu mico. Justo agora que já não me importo se a capa do caderno é infantil demais pra quem está no médio ou minha mãe se preocupa se a capa é adulta demais para quem está no Fundamental. Justo agora que já poderia marcar o reencontro tão esperado da turma de terceiro ano, para mostrarmos filhos, alianças, diplomas... Justo agora, me chega a notícia de que meu primeiro templo perdeu sua santidade; que minha primeira referência de coletividade vai virar um grande oco; que as mesas e cadeiras cúmplices da descoberta da poesia, vão virar sucata desapercebida para os futuros poetas...

Foi no Regina Coeli que eu aprendi a desautomatizar os sentidos. Inclusive, descobri a pluralidade dos sentidos, quando, com olhos cintilando, me disseram que Regina significava num tal de Latim Rainha, e Coeli, dos céus. Foi lá, que na sétima série, descobri que o tempo era um menino bagunceiro, quando o professor de história nos falou que no calendário num sei da onde já estávamos no ano 3016. Foi no Regina Coeli que me apresentei como pingo de chuva e até como pedra; foi lá que estreei palcos como refugiada da seca e dançarina de contemporânea. Foi lá meu primeiro selinho na hora da saída e o primeiro cartão apaixonado, entregue às pressas no intervalo da quarta pra quinta aula.

Foi lá que dona Socorro quase me mata do coração ao anunciar naquela turma de primeiro ano médio que eu havia ganhado um concurso nacional. Foi lá que me entregaram o diploma de escritora. Primeiro, ainda aluna, chorei de emoção com a homenagem à “menina da carta” - e pensar que foi nas folhas do caderno escolar que eu aprendi a ser Samelly... Foi lá que, vários anos depois, chorei com mais emoção ainda quando tive de admitir que eu já pertencia a outra geração e que a nova estava lá, me estudando. Ocupar o espaço oposto do que eu ocupava quando recebia um convidado na escola, me fez sentir velha; me fez sentir útil; me fez sentir atemporal... De repente, a tia Adriana e seus alunos do quarto ano estavam estudando sobre a vida e a obra da tal da Samelly Xavier... E a mulher que eu estava sendo ficou ali, assistindo a menina que sou eu (ainda) imaginando como estaria se sentindo se fosse aluna daquela mesma sala; assim como a aluna que já fui, se imaginava no lugar daquele convidado que um dia também recebi na minha classe.

Não vou manchar este texto com a poluição da ânsia do poder inescrupuloso. Não vou engrossar o coro da indignação de uma família-escola que não teve sequer o direito a uma morte natural, mas a um suicídio alheio. Não, não vou falar de soberba porque até mesmo nos corredores daquela escola aprendi que se as paredes tem ouvidos e as portas tem olhos, nem todo cérebro tem coração. E conhecimento que não aperfeiçoa almas, é conhecimento protocolar para aplausos de inveja, ou seja, é verborragia que não cabe nas minhas lembranças.

Vou falar é do que faz meu coração bater mais forte: de Célia e Rômulo namorando quando eu tinha 11 anos, noivando quando eu tinha 13, casando no mesmo ano que eu entrei no ensino médio e, profeticamente, Célia grávida do primeiro bebê na minha aula da saudade... Vou falar é de Janete me emprestando todos os livros que meus olhos ávidos da quinta série souberam ler, de Machado de Assis a Pedro Bandeira e dela dizendo, na minha primeira aula “menina, você nasceu pra ser poeta” e eu entendendo que ali foi meu batismo. Vou falar de Grace, com seus olhões verdes sabor esperança e seu abraço que não muda nunca e da minha vontade de ser professora para causar em alguém o que ela conseguia causar em mim. Vou falar de Júnior Flor se deliciando, enquanto filósofo que é, com os ping-pongs intelectuais que eu e Reizinho promovíamos inocentemente entre uma descoberta de um fato histórico e outro. Vou falar de Fátima e de Rosa, as flores mais lindas do meu jardim, que conseguem ter ternura no meio da guerra, que são o tipo de mulher que admiro: sensíveis e fortes. Ah, eu vou falar de Chicão e de seu Daniel no portão, pegando no meu pé (quase que literalmente) porque eu detestava usar tênis e meia e, como sabem os adultos, uniforme é uniforme. Se eu for falar de todo mundo, vou me lembrar do que eu mesma escrevi lá pelos meus 14 anos numa aula de Gramática: “uma vida não cabe em palavras”.

E de Dona Socorro, como falar? Nem no dicionário Aurélio enorme e pesado que ela me deu como presente de 15 anos eu encontro as palavras que explique como é que alguém é tão capaz de construir sonhos como ela o é. Eu peço licença ao Aurélio, eu peço licença à classe, à educação, à firmeza, à ética, à inteligência de Dona Socorro, mas dela eu não sei falar. Só sei aplaudir. Eu aplaudo dona Socorro desde o primeiro dia de aula em que ela entrou na minha sala para dar boas vindas e nos dizer que estávamos entrando em outra família: a família Regina Coeli.

Ela estava falando muito sério, porque em sua escola eu fiz irmãos. E num luto de quem perdeu pai, mãe e todo o resto num mesmo acidente descabido, rogo à mesma Rainha dos Céus que continue a coroar a mentora disso tudo e todos aqueles que depositaram um montante da suas vidas com o nobre intuito de contribuir com a construção de outras tantas. Inclusive a minha. E o Regina Coeli fecha suas portas para me lembrar que até de futuro a gente pode ficar órfão.

Samelly Xavier, triste

6 Comments:

Carol Castelo Branco said...

Samelly, acabei de chorar ao ler seu post e me identificar muito com ele... quem fez parte de um Regina Coeli que era mesmo uma família agora se sentirá órfão. Eu me sinto assim... depois de 50 anos a escola da minha infância e da minha adolescência vai fechar. Uma pena mesmo! Mas o texto está belo, pra variar, né? Beijos!

Fabiana Albuquerque said...

Belíssimo olhar, amiga!

Camila Medeiros said...

Me emocionei ao ler seu texto Samelly... trouxe de voltar ótimas lembranças que estavam guardadas. É uma pena o Regina Coeli fechar... mas é um orgulho pra mim dizer que estudei lá!

Maria Luísa said...

Fiquei emocionada e com muitas lembranaçs na cabeça,e sentindo uma tristeza enorme por essa história ter terminado.Só vc mesmo Samelly pra falar tão bem e bonito sobre esse assunto.

Ana Carolina Aragão said...

Eu tinha que chorar esse luto com você Samelly. Órfã de novo e sempre e tanto...O consolo é que as lembranças ainda estão aqui. Beijos

Paulino Ribeiro said...

Profundo seus textos...sempre ouvia coisas boas a respeito deles...Parabéns...