terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A MULHER QUE COME COMO CRIANÇA


Ontem eu estava no sinal vermelho, no meu carro vermelho, e do meu lado uma menininha de 5 ou 6 anos me olhou e não sorriu. Sempre gostei da simpatia gratuita das crianças e sempre me vangloriei delas sorrirem espontaneamente pra mim. Me sentia uma igual, mesmo quando for pra ter 80 anos. O Fato é que ela não sorriu, mas puxou a manga da blusa da senhora de 70 e poucos anos ao seu lado e disse como quando se vai a um zoológico e vê bicho estranho na jaula: vó, olha vó, uma mulher... Não estou mentindo, exagerando, nem metaforizando. Daquela boquinha de 5 ou 6 anos sairam exatamente essas palavras, seguidas de um tchau com a mão e de um sinal verdamente aberto. Não sem antes a vó dizer: mas, Fulana, você fala com todo mundo mesmo...

O episódio não é nada, nunca será nada, contrário a isso me causou todo o sentimento do mundo (com licença poética). E melhor que tudo: o episódio me deu pauta para escrever. Faz meses que não escrevo. Ora por tédio, ora por medo, ora por preguiça, mas principalmente por precaução de quem descobriu de súbito que a escrita é um golpe na eternidade; de quem se sentou de baixo do pé de maçã e não descobriu se não a gravidade de que tudo que cai se colhe. São das gotas da chuva ou dos meus olhos que se aduba o que se acostumou a chamar de vida.

Mas como diria Oswaldo Montenegro (e eu o abracei e isso merece um texto à parte) "não é nada disso que eu queria falar...". O que eu queria falar mesmo é que aquela menininha que um dia eu já fui e que um dia vai me ser e aquela senhora que um dia já foi eu e um dia vou sê-la me deu de volta a certeza que nem o espelho me daria: eu sou uma mulher. E portanto, poderia ser mãe daquela menininha, e portanto só podia estar dirigindo aquele carro vermelho que me disseram com elegância que dirijo elegantemente. E, portanto, só estava voltando da reunião do trabalho que discutia valores financeiros com um cheque a ser depositado em janeiro no nome de Samelly Xavier da Cruz porque eu sou uma mulher... Se me perguntarem como estou, eu digo: estou bem, eu sou uma mulher; se me perguntarem pra onde eu vou, eu digo: eu vou sendo uma mulher; se me perguntarem porque a lágrima ou o sorriso, oras, porque sou uma mulher.

Mas... Ainda ontem depois do almoço, me sentei na cama com um pote de sorvete na mão (acreditem: não há metáforas nesse texto; era um pote mesmo de sorvete) e o enchi do cobertura e de ovomaltine e o meu marido (sim, porque mulheres têm maridos...) me disse: Sabia que você come como criança? E quase que lhe pedi para tomar satisfação com a menininha do sinal vermelho, mas nada que o sorvete não esfriasse minhas palavras porque, afinal, por que não? Sim, eu sou uma mulher que como como criança.

Eu não sei viver a vida sem me lambuzar e não sei se aprender me faria viver, de fato. Meu paladar é mesmo infantil, mas minha visão é adulta. Sim, eu sou uma mulher que como como criança e que vem descobrindo outros sabores. A saber: quando chorei, meus caros adultos, era pra ser consolada, jamais criticada ou julgada; quando chorei meu choro infantil de quem come feito criança, era pra ser dada banho, ninada, posta pra dormir sem cuca pra pegar. Vocês não entenderam e eu chorei mais ainda e vocês entederam menos ainda e a relação proporcional me cansou até que engoli o choro (e se eu não comesse feito criança, eu estaria mastigando-o até agora). Quando gargalhei, minhas queridas crianças, não era pra me exibir ou mostrar que sei; era pra ecoar alegria, como o galo que chama o canto do outro galo e todo Melo Netto sabe que eu sozinha não teço a manhã, preciso da ajuda da fome saciada.

A menininha do sinal me fez lembrar que já sou irreversivelmente uma mulher. Sua vó me fez lembrar que eu sou todo mundo. O homem que deita comigo e ora me diz boa noite, meu amor me fez lembrar que meu coração é quente, mesmo com um pote de sorvete na mão. E eu queria lembrar a vocês que sou a mesma, por isso mudei tanto. Que minha gargalhada ainda é vermelha como o sinal que quando verde me deixa passar e prende os pedestres. Que meu abraço ainda é meu pedaço de alma que deixo nos colos alheios pra ser acolhido ou descartado. Que minhas palavras ainda são eu, com toda sobriedade e delírio que possam insinuar. Que meu silêncio às vezes é grito e aqueles que têm ouvido para ouvir que me beijem. Ah! O mais importante e fundamental de tudo: a mulher que come como criança que me tornei se alimenta mesmo é de amor. E depois que se alimentarem de mim, por favor um único pedido: façam das mãos seus guardanapos.

Sem mais para 2010,
(a tal) Samelly Xavier