O curso da vida, aliás, ouvi um dia você dizer, é feito essa canoinha que vai indo, vai indo, vai indo e quando se vê ela borbulha, glub-glub. Ou desvia a pedra. Ou distorce a correnteza. Ou nada contra a maré. Ou afunda para flutuar. São tantas possibilidades canoinha afora que é melhor ter rumo do que remo; rima do que rumor. Ah, canoinha sem tino...
Acho que quando canoa acima, rio abaixo, a pedra pára é hora de (re)mar. Seja por obstáculo ou calmaria, a canoa há de parar. É essa a hora de descansar o chapéu na sombra. O curso da vida é feito um chapéu feito de palha: tem sombra e frescor e uma utilidade que depende da cabeça.
Bati na porta da tua casa, mas você mudou tanto desde a última vez que eu te vi que me disseram que você se mudou. Mas aqui, na minha cabeçinha canoinha você está do mesmo jeito, carrancudo e risonho; incomodado e prestativo, igual todos os sertanejos que foram estudar na cidade grande. Bom é te recordar quando canoinha abaixo, pedra acima eu te ajudava a colher água na concha da mão. Sem pretensão de saciar a sede. Sem nada além da sede. Sem pretensão de ser sua sede. Eu preferia me fazer de água e assumir o formato da tua concha.
Toda vez que saíamos para pescar, você me explicava e eu entendia com devoção o quanto o tempo mudava a bússola do rio. E a maré que num dia não estava pra peixe, no outro descamava até sereia. Com o tempo, você me dizia, o corpo já não tinha impulso para mergulhar rio a dentro. Por isso a gente jogava a rede que ia longe e ia alto embocando o pôr-do-sol pra dentro da nossa canoinha. Eu que não era besta de te dizer que era aprendiz, logo, nem queria o fundo do mar do rio. Boniteza pra mim era ver tua rede pra lá e pra cá, teu riso de lado pra lá e pra cá, teus segredos contados pela metade pra lá e pra cá. E você em mim. Pra lá e pra cá. E a canoinha nos levando sabe-se lá Deus pra onde...
Aliás, Deus foi quem fez a canoinha pra gente. Mas você não viu ele ralando a madeira, nem colocando a bichinha no rio e veio me dizer que se ele inventou a canoinha o problema era dele. Agora você tinha encontrado com ela e tinha entrando nela e agora era como ela que você ia pra lá e pra cá. Se Deus viesse lhe cobrar madeira, você ia lhe olhar bem no estalar do anoitecer e na cara de pau dizer que você não tinha nada a ver com a criação que Ele criou. A canoinha era feita de vida e você tinha entrado nela sem saber. Agora íamos lá peixando como quem ser-ei-a.
Eu sempre desconfiei que você sabia quem tinha feito a canoinha, mas ela era pequena demais por seu gosto e isso lhe enfezava que só eu sei. Melhor dizer que ela não era da ordem do que era feito, mas do que existia assim mesmo. Sem motivo, nem explicação. E de tanto querer entender porque remar pra baixo jogava água pra cima, você jogou fora os remos e pôs a mão no queixo enquanto de lá pra cá nos encontramos.
Lembrei que amanhã você comemora mais uma data na canoinha. Ah, canoinha pra passar rápido e correnteza pra arrastar tudo que é lembrança, meu Deus do céu.... Eu queria saber qual foi a isca que você usou naquele dia que eu peguei carona na tua inefável canoinha. Sei que ao terminar o abraço de agradecimento eu senti um treco estranho aqui no peito. Acenei com a mão o que transbordou do meu olhar e agora veja: lembrei que amanhã tua canoa faz mais uma era e fiz pra ela esse versinho pra batizar outro pôr-do-sol:


A vida é uma canoinha com remo, sem pressa
A vida é feito uma cheia: de isca, de rio
Viver é perigo pra quem nada, e não pesca
Pra quem se afoga no raso e planta no estio
Por isso, moço menino, relembra o teu tempo:
Leva a canoinha sem rumo, com pé descalço
peito aberto, olhar antigo, desejos ao vento
força no braço, fé sem cansaço e amor em maço.
Pois é isso e só.
Que tua felicidade cheia de birra continue a combinar com minha roupa de domingo a tarde. Um dia, canoinha-vida, eu entro de vez em você...
Com felicitações das margens (do rio e do papel),
Samelly Xavier
Que tua felicidade cheia de birra continue a combinar com minha roupa de domingo a tarde. Um dia, canoinha-vida, eu entro de vez em você...
Com felicitações das margens (do rio e do papel),
Samelly Xavier